Do recheio da nossa cultura
judaico-cristã faz parte um ethos de hipocrisia que é o costume de falar
das pessoas, quando morrem, de forma diferente daquela como falávamos enquanto
eram vivas. No momento de nos deixarem, só lhes reconhecemos virtudes.
Defeitos, fraquezas, senões, nem pensar. Foi o que se passou no recente
falecimento do padre ou, dobrando a língua, de Monsenhor Feytor Pinto.
Correndo o risco de destoar do coro,
vou evocar aquele clérigo tal como o vi com os meus olhos e/ou com os meus
óculos, não esquecendo a prevenção do poeta castelhano Ramón de Campoamor: “Y
es que en el mundo traidor/ nada hay verdad ni mentira: / todo es según el
color/ del cristal con que se mira”.
Conheci o padre Feytor Pinto por frequentar
a igreja do Campo Grande, em Lisboa, onde ele foi pároco durante vários anos.
Conheci-o pelas suas homilias e pelo modo como agia e interagia com os
paroquianos, no seu desempenho pastoral. Considero que era um padre de
relevância intelectual no panorama do clero português onde, de resto, não é
preciso ter grande ficha para ser relevante. Poderia acrescentar que era
relevante também pela sua aparência física, já que era de boa compleição e
ostentava o tão falado sorriso, sorriso com o qual eu engalinhava, por me
parecer fachada de um paternalismo auto-suficiente e até infantilizante. Na
verdade, acho que não era precisa grande acuidade psicológica para perceber que
Feytor Pinto era um homem cheio e a abarrotar de si próprio.
Em certos aspectos e modos de actuar notei
nele uma diferença, para pior, em relação ao pároco precedente. Havia na
paróquia uma “Folha Informativa”, distribuída semanalmente aos frequentadores
da igreja e que era elaborada com a participação dos mesmos. Com a chegada do padre
Feytor Pinto, essa folha foi monopolizada e feita exclusivamente por ele. Antes
havia na paróquia frequentes conferências sobre temas de interesse para a
vivência cristã e onde todos podiam intervir; com o padre Feytor Pinto, tais
sessões praticamente desapareceram. Contíguo à igreja há um espaço com
escaparates, onde são expostos livros de carácter religioso; os da autoria de
Monsenhor estavam sempre em lugar de grande destaque. Lembro-me de uma vez me
ter sentido muito desconfortável e enfiado: estava junto à porta da igreja e
preparava-me para entrar quando chega e pára junto de mim um espadalhão, de
onde sai o seu condutor: padre Feytor Pinto. Fiquei atrapalhado, entrei na
igreja e tive uma espécie de alucinação: vi Jesus de Nazaré montado no burrinho
e vi o Papa Francisco nos seus sapatos cambados!
Disse que ia evocar esse clérigo com
os meus olhos, mas faço-o também com os outros sentidos. Sentido do olfacto:
não me cheirava a ovelhas, como quer o nosso amado Papa actual; cheirava-me,
sim, a próceres e a gente de poder, em cujo âmbito se movia, fosse embora por
mor de funções de que estava incumbido. Era muito obsequioso e subserviente
para os de cima. Quando presentes nas missas, chegava a dirigir-se-lhes
nominalmente do altar e durante a homilia, como o fez, que me lembre, em
relação à Dr.ª Maria Barroso, mulher de Mário Soares. Sentido auditivo:
maçavam-me as suas prolixas homilias, pontuadas continuamente pelos mesmos
bordões verbais e ainda por cima envoltas no tal sorriso enjoativo. Pertencia
àquela categoria de indivíduos que gostam de se ouvir a si próprios. Sentido
gustativo: li na imprensa este seu desejo: “Quando morrer, espero ser
recebido no céu, no banquete eterno, com trouxas -de-ovos “. Ora eu não
gosto dessa guloseima, acho-a adocicada em demasia. Só não chamo à colação o sentido do tacto,
porque nunca me apeteceu nem ele consentiria que lhe passasse a mão no pêlo,
como faço ao meu gato.
Tal é o padre Feytor Pinto como eu o
pinto. Não excluo a possibilidade de, numa pincelada ou noutra, ter sido infiel
ao modelo, devido ao tal “cristal con que se mira”. Não creio, contudo, que eventuais
pequenas sombras prejudiquem as importantes actividades que desenvolveu,
designadamente no campo da saúde. Os seres humanos são complexos e é na sua
complexa verdade que devem ser avaliados. Até para a santidade se requer um
advogado do diabo. Bem vistas as coisas, pareceu-me desproporcionado que o
Presidente da República, na altura deslocado no estrangeiro, tivesse interrompido
a sua agenda para vir participar nas exéquias de Monsenhor.
Acredito convictamente que o padre
Feytor Pinto foi acolhido por Deus na plenitude do seu infinito e incondicional
amor, e desejo-lhe de todo o coração que não lhe tenham faltado as suas tão apetecíveis
trouxas-de-ovos. Se em vez de me dirigir a um clérigo católico, o fizesse em
relação a um imã muçulmano, desejar-lhe-ia também o prémio suplementar das
setenta e duas virgens que, segundo os crentes em Maomé, Alá disponibiliza, em
tais circunstâncias, aos santos daquela religião. Neste caso não o faço, até
porque não sei se o celibato sacerdotal se mantém na outra vida.
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