Prólogos



CANTARES DE JOSÉ AFONSO

(Edição AEIST, Lisboa, 1968)



PREÂMBULO


Quem poderá proibir estas letras de chuva
que gota a gota escrevem nas vidraças
pátria viúva
a dor que passa?

 (Manuel Alegre)






Ou porque esgotados ou porque postos fora do mercado - duas pedras de toque reveladoras - desapareceram dos escaparates as duas primeiras edições dos Cantares de José Afonso, incluídas na colecção "Nova Realidade". Por isso e para satisfazer a insistente procura, resolveu-se em boa hora levar a efeito a presente edição, que se baseia nas antecedentes, acrescida de mais algumas peças.

Há boas razões para o fazer, pois a obra de José Afonso é duplamente exemplar: não apenas no plano artístico, como ainda no âmbito das responsabilidades universitárias. A universidade no nosso país - não dizemos universidade portuguesa, porque é feudo apenas dum reduzido grupo - tem existido à margem de qualquer relação dinâmicamente fecunda com a comunidade nacional. Entrar na universidade é um privilégio de tal modo fora do alcance da grande maioria, que o estudante se tornou numa espécie de semi-deus, símbolo dum estado a que sómente certos efeitos têm a graça de acesso. Esta concepção encontra-se largamente reflectida em imagens poèticamente idealizadas nas artes e na literatura.

Filho duma minoria dominante - vampiresca, em linguagem zeafonsina - como poderíamos exigir do estudante português uma condciência social? Tinha que carecer dela ou por blocagens sócio-psicológicas ou porque não lhe interessava deixar-se penetrar por ela, molestadora como é da quietude de consciência. Que lhe importava, portanto, que duas em cada três pessoas no mundo tivessem fome, que em cada dia morressem no mundo milhares de pessoas com fome, que esquadras colossais se sustentassem com o sangue de milhões de irmãos seus? Em suma, que significado poderia ter para ele a exploração do homem pelo homem? Se é tão bom ser estudante e viver de estúrdias e fazer serenatas!

O ambiente que melhor tem encarnado esta maneira alienada de viver a condição universitária é, todos o sabem, o de Coimbra. O seu corpo académico, tanto da parte dos professores como dos estudantes, tem vegetado hermèticamente encerrado num provincianismo acéfalo, em cujos principais ingredientes sobressaiem um fanático culto do passado pelo passado, confundindo tradição com rotineirismo abstruso; um segregacionismo de casta , que se exprime, por um lado, no dualismo estudante-futrica e que, por outro, e em nome de uma pretensa especificidade dos problemas de Coimbra, tem levado, por vezes, à deserção das lutas em que estão em jogo direitos e valores comuns. A isto acresce certa propensão militarista, evidenciado em poses, regulamentações e hierarquias praxísticas, e, como envoltura e condimento de tudo, uma calda sentimental, que tem tanto de imaturidade como de marialvismo.

Para o estudante coimbrão, sebenteiro e impante de auto-suficiência aldeã, as grandes questões têm sido, durante séculos, puerilidades de mau gosto e, entre as suas maiores coroas de glória, o poder contar o maior número de cabeças rapadas ou de anos pelos quais conseguiu prolongar o curso, chegando a haver quem se orgulhasse de ter os filhos dos antigos colegas por condiscípulos!

Sub-produto duma oligarquia dessorada, ele mascarava sob as roupagens da intelectualidade o seu parasitismo social, provando que filho de vampiro sabe sugar.

Coimbra tem assim constituído a praça forte do reaccionarismo e da alienação portuguesa, e, se pensarmos que foi durante muito tempo o único centro universitário do País, temos de reconhecer nela o beco da nossa cultura e um dos maiores freios ao nosso progresso sócio-económico.

Felizmente que desde alguns anos para cá um grupo de gente nova está surgindo, reduzido é certo, mas cada vez mais numeroso e servindo de suporte a uma mentalidade diferente, sensível às realidades que nos cercam e aberta para os dramas que atormentam o mundo actual. Uma mocidade consciente e adulta, que força com decisão janelas do velho reduto para que o ar entre, e vem determinada a reivindicar, com o seu empenhamento, uma parte nos destinos da comunidade em que se quer integrada.

É neste grupo, e como figura de primeiro plano, que nos aparece José Afonso. O seu dom reside no sentido pessoalíssimo como sabe auscultar a alma do povo e explorar expressivamente os mais ricos mananciais da sua cultura. Ao ouvi.lo somos possuídos por algo de novo e que ao mesmo tempo sentimos como familiar.

Considera-se o fado a canção nacional, e é-o, de facto, mas no pior sentido: enquanto refúgio fruste ou solidão onanista duma nação que tem vindo hipotecando os seus melhores sonhos a um "Encoberto" que teima em não se mostrar. O chamado fado de Coimbra, sem embargo de características próprias, não se move todavia longe da mesma órbitra, nem tem conseguido libertar-se de certa monotonia nostálgica e desgarrada, ou da pobreza dos mesmos e eternos lugares comuns. A renovação só podia buscar-se numa abertura que, sem o desfigurar nos traços essenciais, o fecundasse com a seiva de novos motivos e com a floração de outras invenções expressivas. Foi esta a via largamente aberta por José Afonso, a via de renovação de qualquer forma de arte alienada: o regresso às raízes, ou seja, àquela pulsação dialéctica com o povo, única garantia de vitalidade. Com essa transfusão de sangue novo em formas gastas, José Afonso logrou, numa síntese feliz, trazer até à gente comum géneros musicais que poderíamos considerar, em certa medida, gírias de casta.

Reúnem-se aqui as letras das canções de José Afonso. Claro que elas são apenas um corpo à espera de ser habitado pela sua voz mágica e castigada, e que teráo como natural complemento os respectivos discos, editados ou a editar. Mas esse corpo possui qualidades literárias suficientes para justificar a sua publicação independentemente da música. E ainda aqui José Afonso continua a ser um exemplo para a indigência, que roça por vezes o impudor, da generalidade das letras da música nacional.

É, aliás, nas letras que melhor se evidencia aquele tacto invulgar com que José Afonso sabe ir ao encontro do povo, quer na exploração dos motivos, quer na forma como os interpreta. Povo gerado e modelado em convívio com o mar, tinha fatalmente que exibir as suas marcas nas várias manifestações da sua cultura. Na poesia o mar yem sido uma das notas mais obsidiantes. Não é, pois, gratuita a abundância nos Cantares de elementos como praias, barcos, sereias, marinheiros, despedidas; nem outrossim é gratuita a presença de certos símbolos do maravilhoso popular como moiras encantadas, cavaleiros, feiticeiras. José Afonso continua-os e moderniza-os, inserindo-os na realidade actual, em tons de ironia magoada.

Simultâneamente os seus versos abrem-se a figuras ou heróis populares da nossa história recente (Catarina de Baleizão, António Aleixo); aos problemas e dramas do quotidiano (vampiros, emigrantes, "meninas perdidas", mendigos); e à sua experiência docente em diversas paragens (presença da infância, temas extra-metrópole, etc).

A forma casa-se à maravilha com a temática: versos simples e curtos, com predomínio do mais vincadamente popular, o redondilho; repetições paralelísticas com reminiscências da lírica trovadoresca; frequência de estribilhos e refrões; toadas de cancioneiros, de jogos de roda, de canções de embalar, parte delas recolhidas, conforme testemunho do autor, directamente do povo. E, quer originais quer adaptações ou arranjos, todos os poemas são sujeitos a uma sábia elaboração de acordo com as exigências do canto, e cujo resultado é esse consórcio perfeito da letra e da música, só possível a alguém que consiga combinar o talento de alto poeta com o de grande cantor. Este é o dom de José Afonso, menestrel dos tempos modernos.

E se algum qualificativo quiséssemos utilizar, que melhor resumisse as qualidades destes Cantares, diríamos que eles são eminentemente cultos. Não é de facto a cultura uma relação viva do homem com a realidade circundante? Por serem cultos é que muitos destes cantares andam nas bocas do vulgo, ilustrando assim esta verdade tão singela como frquentemente esquecida: que a arte para ir direita ao povo tem de brotar do seu húmus. E é José Afonso, de formação coimbrã, que vem ensinar a todos os coimbrões deste país o genuíno sentido de tradição , que não consiste de modo algum na insânia mental, na caturrice asinina de ir nutrir-se na manjedoura do passado, mesmo que o seu recheio seja apenas de putrefactas vitualhas; é, sim, vinculação ao passado, mas naquilo que possa oferecer de válido no sentido do progresso humano. Não se concebe o presente sem o passado, é certo; mas essa relação deve entender-se no sentido da corda que liga as duas pontas do arco para gerar a tensão que nos projecte am alvos futuros.

Queremos que esta publicação seja uma especial homenagem de simpatia a José Afonso, neste ano em que os vampiros, ainda não fartos de comer tudo, vieram comer o seu pão e tentaram comer até a sua voz, proibindo-a de cantar nas associações de estudantes. Mas estas canções têm precisamente isto de peculiar: o não poderem ser comidas nem abafadas, até por já não serem pertença de José Afonso: tão identificadas aparecem com a própria voz do povo, que este as fez suas e aí andam, património comum, aos quatro ventos. E andarão cada vez mais, porquanto de nós dependa.

só cantando se pode incomodar
quem à vileza do silêncio nos obriga.
Eu venho incomodar.
Trago palavras como bofetadas
e é inútil mandarem-me calar.

 (Manuel Alegre)

A.F.        [Flávio Henrique Vara]

Nota: Devido à conjuntura política de então, o autor assinou com as iniciais A.F. . 
O livro mereceu a atenção da censura que, através da PIDE, o proibiu de circular no País, por ser clandestino e inserir poesias puramente subversivas (V. primeiro documento abaixo). 
Em 1971, Zeca Afonso era procurado pela Direcção-Geral de Segurança, que a 12 de Junho de 1971 pediu a sua captura ao Posto da Gare Marítima de Alcântara (V. segundo documento abaixo).

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