domingo, 27 de dezembro de 2020

A Torre Bela e a alma

Imaginemos, por momentos, que as imagens que vimos na TV da carnificina na Torre Bela, em vez de serem cadáveres de gamos, veados e javalis, eram de homens, mulheres e crianças. Não nos passaria pela cabeça que seriam o resultado de um ataque de animais selvagens. Estes, quando matam as suas presas, não o fazem em tão larga escala, só matam por necessidade de defesa ou de subsistência, não dispõem os corpos alinhados em filas daquela maneira e, sobretudo, não matam por prazer, por desporto ou para fazerem colecção das suas vítimas.

São, segundo nós dizemos, animais “irracionais”. E, todavia, têm alma como nós. A palavra “animal” vem do latim anima, que significa alma, e quer dizer isso mesmo: dotado de alma. Por ter escrito isso num jornal da minha terra, escandalizei muitas almas pias e até fui chamado à pedra por um senhor cónego, vigário geral da diocese. Verdade seja dita que na conversa que tive com ele, e sem embargo da sua baixa literacia teológica, e de ser um salazarista impenitente, até me pareceu uma boa alma e por certo neste momento está no céu em alma e corpo.
 
Para afirmar que os nossos irmãos “irracionais” são também portadores de alma, nem precisamos de nos respaldar em renomados teólogos. Sentimo-lo e intuímo-lo quando somos atravessados pelo olhar de um cão abandonado, quando nos arrepiamos com as sevícias a que são sujeitos os touros nas arenas, quando nos deliciamos a ver o modo como as aves alimentam no ninho os seus filhotes e como outros animais defendem até à morte as suas crias. 

Porém, diante daquelas imagens que vimos na TV, eu já começo a duvidar que todos os animais sejam dotados de alma. Mas, a haver alguma espécie que o não seja, não tenho quaisquer dúvidas: trata-se do homo sapiens. Bom Natal.

Ligações: Público, carta ao director (27 Dez 2020); Outras cartas ao Director do Público de Fávio Vara.

terça-feira, 22 de dezembro de 2020

E os nossos bispos e cardeais?

A população do nosso país é constituída na maioria por católicos, numa proporção que anda pelos oitenta por cento, segundo as estatísticas. Consequentemente é presumível que o bando de algozes que trataram e mataram o imigrante ucraniano Ihor Homenyuk e tentaram ocultar a sua tenebrosa façanha, era, na sua maioria, composto por baptizados e, quiçá, alguns até fossem à missa.

Os católicos dizem-se cristãos e uma das mais valiosas heranças da cultura cristã, e tradição já herdada dos antigos tempos bíblicos, é o acolhimento fraterno aos estrangeiros, aos migrantes, aos refugiados, aos peregrinos. A hospitalidade é para o cristão um dever sagrado; dar pousada a um expatriado é como uma visita de Deus a nossa casa.

O crime inominável perpetrado no SEF é um golpe cravado no âmago da mensagem evangélica, um buraco negro na mundividência cristã. Amarfanha-nos, interpela-nos. O Papa Francisco foi a Lampedusa testemunhar a sua vergonha pela forma como a Europa, que se reclama da "civilização cristã", trata os emigrantes e na sua recente encíclica Fratelli Tutti dedica largo espaço ao assunto. E entre nós onde param os hierarcas da igreja? Eu esperava que se manifestassem para me sentir mais acompanhado, mas até agora, como em muitas ocasiões, só vejo canes muti non volentes latrare. Este crime não os concerne? É para não se imiscuírem na política? Mas a política impede alguém de exprimir os seus sentimentos, de se condoer, de se exasperar, de chorar?

Ligações: Público carta ao director (28 Dez. 2020); Outras cartas ao Director do Público de Fávio Vara.

Arcades Ambo

  Rapazola petulante e tão levado da breca que pô-lo a governante não lembraria ao careca.   Lembrou, contudo, ao Monhé, per...