quarta-feira, 20 de outubro de 2021

Padre Feytor Pinto I I


Estou certo que não minto

nem estou fora da razão

dizendo que Feytor Pinto

foi um clérigo distinto,

sabedor e sabidão.

Padre Feytor Pinto I

 

Do recheio da nossa cultura judaico-cristã faz parte um ethos de hipocrisia que é o costume de falar das pessoas, quando morrem, de forma diferente daquela como falávamos enquanto eram vivas. No momento de nos deixarem, só lhes reconhecemos virtudes. Defeitos, fraquezas, senões, nem pensar. Foi o que se passou no recente falecimento do padre ou, dobrando a língua, de Monsenhor Feytor Pinto.

Correndo o risco de destoar do coro, vou evocar aquele clérigo tal como o vi com os meus olhos e/ou com os meus óculos, não esquecendo a prevenção do poeta castelhano Ramón de Campoamor: “Y es que en el mundo traidor/ nada hay verdad ni mentira: / todo es según el color/ del cristal con que se mira.

Conheci o padre Feytor Pinto por frequentar a igreja do Campo Grande, em Lisboa, onde ele foi pároco durante vários anos. Conheci-o pelas suas homilias e pelo modo como agia e interagia com os paroquianos, no seu desempenho pastoral. Considero que era um padre de relevância intelectual no panorama do clero português onde, de resto, não é preciso ter grande ficha para ser relevante. Poderia acrescentar que era relevante também pela sua aparência física, já que era de boa compleição e ostentava o tão falado sorriso, sorriso com o qual eu engalinhava, por me parecer fachada de um paternalismo auto-suficiente e até infantilizante. Na verdade, acho que não era precisa grande acuidade psicológica para perceber que Feytor Pinto era um homem cheio e a abarrotar de si próprio.

Em certos aspectos e modos de actuar notei nele uma diferença, para pior, em relação ao pároco precedente. Havia na paróquia uma “Folha Informativa”, distribuída semanalmente aos frequentadores da igreja e que era elaborada com a participação dos mesmos. Com a chegada do padre Feytor Pinto, essa folha foi monopolizada e feita exclusivamente por ele. Antes havia na paróquia frequentes conferências sobre temas de interesse para a vivência cristã e onde todos podiam intervir; com o padre Feytor Pinto, tais sessões praticamente desapareceram. Contíguo à igreja há um espaço com escaparates, onde são expostos livros de carácter religioso; os da autoria de Monsenhor estavam sempre em lugar de grande destaque. Lembro-me de uma vez me ter sentido muito desconfortável e enfiado: estava junto à porta da igreja e preparava-me para entrar quando chega e pára junto de mim um espadalhão, de onde sai o seu condutor: padre Feytor Pinto. Fiquei atrapalhado, entrei na igreja e tive uma espécie de alucinação: vi Jesus de Nazaré montado no burrinho e vi o Papa Francisco nos seus sapatos cambados!

Disse que ia evocar esse clérigo com os meus olhos, mas faço-o também com os outros sentidos. Sentido do olfacto: não me cheirava a ovelhas, como quer o nosso amado Papa actual; cheirava-me, sim, a próceres e a gente de poder, em cujo âmbito se movia, fosse embora por mor de funções de que estava incumbido. Era muito obsequioso e subserviente para os de cima. Quando presentes nas missas, chegava a dirigir-se-lhes nominalmente do altar e durante a homilia, como o fez, que me lembre, em relação à Dr.ª Maria Barroso, mulher de Mário Soares. Sentido auditivo: maçavam-me as suas prolixas homilias, pontuadas continuamente pelos mesmos bordões verbais e ainda por cima envoltas no tal sorriso enjoativo. Pertencia àquela categoria de indivíduos que gostam de se ouvir a si próprios. Sentido gustativo: li na imprensa este seu desejo: “Quando morrer, espero ser recebido no céu, no banquete eterno, com trouxas -de-ovos “. Ora eu não gosto dessa guloseima, acho-a adocicada em demasia.  Só não chamo à colação o sentido do tacto, porque nunca me apeteceu nem ele consentiria que lhe passasse a mão no pêlo, como faço ao meu gato.

Tal é o padre Feytor Pinto como eu o pinto. Não excluo a possibilidade de, numa pincelada ou noutra, ter sido infiel ao modelo, devido ao tal “cristal con que se mira”. Não creio, contudo, que eventuais pequenas sombras prejudiquem as importantes actividades que desenvolveu, designadamente no campo da saúde. Os seres humanos são complexos e é na sua complexa verdade que devem ser avaliados. Até para a santidade se requer um advogado do diabo. Bem vistas as coisas, pareceu-me desproporcionado que o Presidente da República, na altura deslocado no estrangeiro, tivesse interrompido a sua agenda para vir participar nas exéquias de Monsenhor.

Acredito convictamente que o padre Feytor Pinto foi acolhido por Deus na plenitude do seu infinito e incondicional amor, e desejo-lhe de todo o coração que não lhe tenham faltado as suas tão apetecíveis trouxas-de-ovos. Se em vez de me dirigir a um clérigo católico, o fizesse em relação a um imã muçulmano, desejar-lhe-ia também o prémio suplementar das setenta e duas virgens que, segundo os crentes em Maomé, Alá disponibiliza, em tais circunstâncias, aos santos daquela religião. Neste caso não o faço, até porque não sei se o celibato sacerdotal se mantém na outra vida.

 


quarta-feira, 13 de outubro de 2021

João Rendeiro

                                             

Quis pôr as minhas poupanças

a render; fui ao Rendeiro

para saber qual a renda

que me dava, se pusesse

no seu banco o meu dinheiro.


Ele, todo rapapés,

e vendo que eu era otário,

prometeu-me uma pechincha;

eu, contentinho da silva,

fui no conto do vigário.


Pisgou-se logo prà estranja,

ninguém sabe o paradeiro;

e eu fiquei chuchando o dedo

sem a renda e o dinheiro.




Arcades Ambo

  Rapazola petulante e tão levado da breca que pô-lo a governante não lembraria ao careca.   Lembrou, contudo, ao Monhé, per...