sexta-feira, 16 de março de 2018

Nuno Nozelos, Escritor Egrégio

Costumo passar férias nas minhas berças, prantadas para além e bastante a norte do Marão, já nas vizinhanças de nuestros hermanos. Uma vez, numa dessas vilegiaturas e em amena conversa com um meu conterrâneo e compincha dos tempos da escola primária, fez-me ele esta pergunta: ouvi dizer que fulano é escritor, mas é mesmo? O fulano a que se referia era outro cara que também tinha sido nosso condiscípulo nas primeiras letras e que na altura botava umas zurrapas impressas, num jornal semanário da região, orn(e)ando-as com abundantes calinadas ortográficas e gramaticais, ignorando até que o sujeito não se separa, por virgulas, do predicado. Por estas e por outras é que a pergunta do meu amigo sobre se o dito cujo era ou não era escritor me entalou num embaraçoso dilema: se dissesse que sim, faltava à verdade e violentava a minha consciência; se dissesse que não, desagradava ao meu amigo que ainda era aparentado com o “jornalista”. 

Lá me safei como pude e com outra pergunta: quando se fazem obras numa casa, como chamam ao operário encarregue de a pintar? Pintor, respondeu. Então, se quem pinta é pintor, quem escreve... E deixei que fosse ele a completar a frase e a ficar com o ónus da resposta.
 
Todos os escritores escrevem, mas nem todos os que escrevem são escritores. O verbo escrever deu origem a escritor, seu filho legítimo, e também é pai duma infinidade de filhos bastardos: escrevente, escrevedor, escrevinhador, escriba, escrivão, escriturário e por aí fora. Muitos destes zorros invejam ao escritor o seu estatuto, e alguns até se travestem com o seu nome. Frequentemente a comunicação social dá notícia de falsos médicos, falsos padres, falsos advogados, etc., mas ninguém denuncia os falsos escritores, o gato por lebre, frequente nessa confraria. Se por acaso houvesse uma ASAE das letras, não lhe faltava trabalho!...

Em Trás-os-Montes, no campo literário há do melhor e do piorio. Referi um exemplo do segundo para realçar, por contraste, o perfil de um escritor que o é a sério, para destrinçar o ouro do pechisbeque. Refiro-me 25 a Nuno Nozelos, a quem, no título deste texto, chamei escritor egrégio. Escritor porque, para o ser, não basta escrever livros, é necessário trazer algum valor acrescentado ao património de uma língua, uma contribuição de cunho pessoal, tão inconfundível como as impressões digitais; em suma, é preciso ter talento, um dom que o Criador não distribui a toda a gente. O escritor, e sobretudo o poeta (do grego poiein, produzir, gerar), é de certa forma um émulo de Deus; as suas palavras, como o fiat divino, criam o que nomeiam.
 
Também chamei egrégio a Nuno Nozelos, e não foi por acaso. Esse adjectivo provém duma palavra latina, grex, que significa rebanho, e que deu, em português, grei. É precedida do prefixo e(x), a indicar movimento de dentro para fora. Egrégio é, portanto, aquele que sobressai na manada, aquele que se distingue da vulgaridade, o notável.
 
E neste momento dou comigo a pensar num rebanho de escreventes, que existiu até há poucos anos atrás, um jornal-revista chamado “Poetas & Trovadores”. Editava-se em Guimarães, mas servia de redil a reses oriundas de diferentes paragens, do Minho ao Algarve. As suas páginas vinham atulhadas de produtos constituídos, na sua maioria, por aglomerados de palavras sem ritmo, sem métrica, sem harmonia, cheias de vulgaridades, de platitudes, que só por incluírem aqui ou ali uma rima, se reivindicavam de poesia. Assinei-o durante três anos. A honra do convento e o preço da assinatura só se salvaram nas poucas vezes em que nessa publicação pude ler poemas dignos desse nome, com originalidade, com mestria de fabrico, assinados por Nuno Nozelos. Era a pepita no meio do cascalho.

Além de poeta, Nuno Nozelos era um abalizado prosador e um prosador trasmontano. Chamo-lhe assim não primacialmente por ter nascido em Trás-os-Montes, mas pelos ingredientes que recheiam os seus livros, e que são de marca tão genuína como as alheiras do seu concelho, Mirandela. Um escritor, qualquer que seja a sua terra, não tem necessariamente de escrever sobre ela. Só quando é obrigado pelo coração. Ora Nuno Nozelos amava entranhadamente o seu terrunho trasmontano e as suas gentes; ali regressava com frequência, como ao aconchego materno, como o falcão regressa à sua querência; ali se retemperava, se repristinava. Reparem na melodia repousante destes versos, do livro “Musa Preterida”, p. 27:
 
E vou dar ao casebre de uma aldeia. 
Ali fico e repouso do caminho. 
Há batatas e pão, há caldo e vinho, 
rachas ao lume e azeite na candeia.

Esse amor transbordou para a sua obra, em especial para os seus livros de contos. Neles vive o povo do Nordeste, com o seu modo de ser, a sua cultura, as suas condições de vida, os seus interesses, os seus pundonores, as suas manhas e, acima de tudo, com o seu linguajar. Os forasteiros que desejem saber como são as gentes que habitam aquelas paragens, leiam os contos de Nuno Nozelos e não percam “Gente da Minha Terra”. E os naturais de lá, que gostem de se mirar ao espelho, leiam-nos também.

Nuno Nozelos era dotado de talentos estéticos não só no campo da literatura. Poucos saberão que também era amante da pintura e que a praticou por um breve período, vendo-se forçado a abdicar dela por impedimento de uma rinite alérgica que se lhe exacerbava com o cheiro e a proximidade das tintas. Por amabilidade de Celeste Nozelos, que foi a sua dedicada companheira ao longo da vida, pude recentemente admirar, na sua casa, alguns quadros por ele pintados. E por essa amostra – ex digito gigas – avaliei até onde poderia ter ido nessa arte plástica, se tivesse podido consagrar-se-lhe. 

Falta acrescentar que, como é próprio das pessoas de valor e ao contrário do tal caramonico a que me referi no início, o Nuno Nozelos era uma pessoa simples, modesta, de trato afável e avesso a exibicionismos. No rebanho há os que sobressaem pela própria estatura, são os egrégios; e os que forcejam por sobressair em bicos de pés, são os egressos. 

Nós, seres humanos, somos ontologicamente falhados, porque nascemos para viver incessantemente à procura do que é impossível conseguir dentro das fronteiras deste mundo: matar a sede de beleza e de amor que nos habita e nos consome. Os poetas e os artistas são porventura aqueles que mais se acercam da fonte, mas, por outro lado, são os que mais excruciantemente experimentam a sua falha. 

Meu caro Nuno Nozelos, espero que do outro lado da fronteira que já transpuseste, descanses ressarcido de todas as tuas sedes.

Arcades Ambo

  Rapazola petulante e tão levado da breca que pô-lo a governante não lembraria ao careca.   Lembrou, contudo, ao Monhé, per...