Costumo passar férias nas minhas berças, prantadas para além e
bastante a norte do Marão, já nas vizinhanças de nuestros hermanos.
Uma vez, numa dessas vilegiaturas e em amena conversa com um meu
conterrâneo e compincha dos tempos da escola primária, fez-me ele esta
pergunta: ouvi dizer que fulano é escritor, mas é mesmo? O fulano a que
se referia era outro cara que também tinha sido nosso condiscípulo nas
primeiras letras e que na altura botava umas zurrapas impressas, num
jornal semanário da região, orn(e)ando-as com abundantes calinadas
ortográficas e gramaticais, ignorando até que o sujeito não se separa,
por virgulas, do predicado. Por estas e por outras é que a pergunta do
meu amigo sobre se o dito cujo era ou não era escritor me entalou num
embaraçoso dilema: se dissesse que sim, faltava à verdade e violentava a
minha consciência; se dissesse que não, desagradava ao meu amigo que
ainda era aparentado com o “jornalista”.
Lá me safei como pude e com outra pergunta: quando se fazem obras
numa casa, como chamam ao operário encarregue de a pintar? Pintor,
respondeu. Então, se quem pinta é pintor, quem escreve... E deixei que
fosse ele a completar a frase e a ficar com o ónus da resposta.
Todos os escritores escrevem, mas nem todos os que escrevem são
escritores. O verbo escrever deu origem a escritor, seu filho legítimo,
e também é pai duma infinidade de filhos bastardos: escrevente, escrevedor,
escrevinhador, escriba, escrivão, escriturário e por aí fora. Muitos destes
zorros invejam ao escritor o seu estatuto, e alguns até se travestem com
o seu nome. Frequentemente a comunicação social dá notícia de falsos
médicos, falsos padres, falsos advogados, etc., mas ninguém denuncia os
falsos escritores, o gato por lebre, frequente nessa confraria. Se por acaso
houvesse uma ASAE das letras, não lhe faltava trabalho!...
Em Trás-os-Montes, no campo literário há do melhor e do piorio.
Referi um exemplo do segundo para realçar, por contraste, o perfil de um
escritor que o é a sério, para destrinçar o ouro do pechisbeque. Refiro-me
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a Nuno Nozelos, a quem, no título deste texto, chamei escritor egrégio.
Escritor porque, para o ser, não basta escrever livros, é necessário trazer
algum valor acrescentado ao património de uma língua, uma contribuição
de cunho pessoal, tão inconfundível como as impressões digitais;
em suma, é preciso ter talento, um dom que o Criador não distribui a toda
a gente. O escritor, e sobretudo o poeta (do grego poiein, produzir, gerar),
é de certa forma um émulo de Deus; as suas palavras, como o fiat divino,
criam o que nomeiam.
Também chamei egrégio a Nuno Nozelos, e não foi por acaso. Esse
adjectivo provém duma palavra latina, grex, que significa rebanho, e que
deu, em português, grei. É precedida do prefixo e(x), a indicar movimento
de dentro para fora. Egrégio é, portanto, aquele que sobressai na manada,
aquele que se distingue da vulgaridade, o notável.
E neste momento dou comigo a pensar num rebanho de escreventes,
que existiu até há poucos anos atrás, um jornal-revista chamado
“Poetas & Trovadores”. Editava-se em Guimarães, mas servia de redil
a reses oriundas de diferentes paragens, do Minho ao Algarve. As suas
páginas vinham atulhadas de produtos constituídos, na sua maioria, por
aglomerados de palavras sem ritmo, sem métrica, sem harmonia, cheias
de vulgaridades, de platitudes, que só por incluírem aqui ou ali uma
rima, se reivindicavam de poesia. Assinei-o durante três anos. A honra do
convento e o preço da assinatura só se salvaram nas poucas vezes em que
nessa publicação pude ler poemas dignos desse nome, com originalidade,
com mestria de fabrico, assinados por Nuno Nozelos. Era a pepita no
meio do cascalho.
Além de poeta, Nuno Nozelos era um abalizado prosador e um
prosador trasmontano. Chamo-lhe assim não primacialmente por ter
nascido em Trás-os-Montes, mas pelos ingredientes que recheiam
os seus livros, e que são de marca tão genuína como as alheiras do seu
concelho, Mirandela. Um escritor, qualquer que seja a sua terra, não tem
necessariamente de escrever sobre ela. Só quando é obrigado pelo coração.
Ora Nuno Nozelos amava entranhadamente o seu terrunho trasmontano
e as suas gentes; ali regressava com frequência, como ao aconchego
materno, como o falcão regressa à sua querência; ali se retemperava,
se repristinava. Reparem na melodia repousante destes versos, do livro
“Musa Preterida”, p. 27:
E vou dar ao casebre de uma aldeia.
Ali fico e repouso do caminho.
Há batatas e pão, há caldo e vinho,
rachas ao lume e azeite na candeia.
Esse amor transbordou para a sua obra, em especial para os seus livros
de contos. Neles vive o povo do Nordeste, com o seu modo de ser, a sua
cultura, as suas condições de vida, os seus interesses, os seus pundonores,
as suas manhas e, acima de tudo, com o seu linguajar. Os forasteiros
que desejem saber como são as gentes que habitam aquelas paragens,
leiam os contos de Nuno Nozelos e não percam “Gente da Minha Terra”.
E os naturais de lá, que gostem de se mirar ao espelho, leiam-nos também.
Nuno Nozelos era dotado de talentos estéticos não só no campo
da literatura. Poucos saberão que também era amante da pintura e que
a praticou por um breve período, vendo-se forçado a abdicar dela por
impedimento de uma rinite alérgica que se lhe exacerbava com o cheiro
e a proximidade das tintas. Por amabilidade de Celeste Nozelos, que foi a
sua dedicada companheira ao longo da vida, pude recentemente admirar,
na sua casa, alguns quadros por ele pintados. E por essa amostra –
ex digito gigas – avaliei até onde poderia ter ido nessa arte plástica, se
tivesse podido consagrar-se-lhe.
Falta acrescentar que, como é próprio das pessoas de valor e ao
contrário do tal caramonico a que me referi no início, o Nuno Nozelos era
uma pessoa simples, modesta, de trato afável e avesso a exibicionismos.
No rebanho há os que sobressaem pela própria estatura, são os egrégios;
e os que forcejam por sobressair em bicos de pés, são os egressos.
Nós, seres humanos, somos ontologicamente falhados, porque
nascemos para viver incessantemente à procura do que é impossível
conseguir dentro das fronteiras deste mundo: matar a sede de beleza e de
amor que nos habita e nos consome. Os poetas e os artistas são porventura
aqueles que mais se acercam da fonte, mas, por outro lado, são os que mais
excruciantemente experimentam a sua falha.
Meu caro Nuno Nozelos, espero que do outro lado da fronteira que já
transpuseste, descanses ressarcido de todas as tuas sedes.