Os trasmontanos, na sua maioria, sabem o significado da expressão
“serrar a velha”, porque é o nome duma tradição carnavalesca das suas terras;
mas para quem não é nordestino, o sentido da expressão não é óbvio e carece de
esclarecimento.
Trás-os-Montes, como diz o nome, é uma região montanhosa,
formada por cabeços, colinas, outeiros; e os seus habitantes vêem essas
elevações sob duas vertentes principais: uma a que chamam soalheiro;
outra, a oposta, que designam por avessedo. Soalheiro é a vertente
voltada a sul, mais exposta ao sol, com temperaturas mais propícias às culturas
e às árvores de fruto; o avessedo, que algumas terras alteram para avesseiro, é
o lado contrário, voltado a norte, mais frio e húmido e onde a neve e a geada
levam mais tempo a derreter.
Parece que a orografia moldou o carácter, a maneira de ser
dos trasmontanos, cuja idiossincrasia reflecte essa realidade bifronte. A
trasmontanidade tem assim o seu lado solar e o seu lado sombrio. Do primeiro
fala-se constantemente, quando se identifica Trás-os-Montes com o “Reino
Maravilhoso”, quando se proclama que para lá do Marão mandam os que lá estão,
quando se pinta o retrato robot do transmontano: rijo e firme como as rochas que o viram
nascer, com fibra moral que pode quebrar mas não verga. Isto no que respeita ao
lado soalheiro da sua psique. Mas há o outro lado, o avessedo, da inveja, da
maledicência, do interesseirismo, da mesquinhez, da doblez, da fanfarronice.
Disso não se fala nem lhe fazem referência os transmontanófilos, nem os
etnólogos quando abordam a trasmontanidade. Só em certas ocasiões, como no
Carnaval, é possível soltar a língua e escalpelizar os podres, as vilezas, as
chico-espertices. É para isso que serve a tradição de “Serrar A Velha”. Numa noite
combinada, um grupo de malta sobe ao ponto mais elevado da povoação e aí, em
altas vozes e usando um embude como altifalante, faz um relato do que ao longo
do no aconteceu na aldeia, do que deu nas vistas, mais picante ou mais vergonhoso,
e tudo isso é recitado em linguagem desbragada e em versos chocarreiros, com
menção dos nomes dos protagonistas visados. Tudo é proclamado aos quatro
ventos.
É isso que se chama “serrar a velha”. A “velha” representa
essas malignidades, essas escabrosidades. É uma bruxa repulsiva, uma entidade
maléfica que apetece esconjurar, serrar e cortar aos pedaços, tal como apetetece
fazer a certas encarnações demoníacas, como Putin, por exemplo.
Dando continuidade a essa tradição, e à boleia da mesma, é
que escrevi este livro, para “serrar” certos caramonicos, que usam o nome de
trasmontanos mas para desonra dos mesmos. Se quiserem saber quem são, leiam o
livro.
Ligação; Editora Poesia Impossível