terça-feira, 7 de setembro de 2021

SER OU NÃO SER ESCRITOR (*)

 

Quando há tempos fui de férias

à minha aldeia natal

reparei que a tia Rita,

minha vizinha do lado,

andava um pouco esquisita

e com ar acabrunhado,

fora do habitual.

 

-Que se passa, tia Rita,

que parece adoentada?

- É do tempo, não é nada.

 

Eu fiquei-me cá na minha,

magicando que talvez

fosse como de outra vez

um problema da galinha:

a pita da tia Rita

enjeitara o seu indez,

tinha ido pôr o ovo

ao poleiro da vizinha.

 

Mas depois de breve pausa

e em conversa ao pé da orelha,

lá me foi dizendo a causa

que a fazia andar de telha.

 

Tia Rita tem um mano

que estudou no seminário

e que agora é funcionário

na Câmara Municipal,

e segundo a tia Rita,

tem muita veia prà escrita,

e até assina umas crónicas

no semanário local.

 

Na rua da tia Rita

mora também um farsola,

um estupor, salvo o seja”,

que andou com o mano na escola

e que lhe tem muita inveja.

E não é que o meliante

se permitiu a bravata

de dizer que o seu irmão

não tem queda para escritor

mas para plantar batata?

 

- Tamanho descaramento

pôs-me em tal enervamento

que ando até fora de mim;

mas juro que esse bandalho

vai pagar pelo enxovalho,

porque isto não fica assim.

 

Tia Rita tem vaidade

com as produções do irmão,

não perde oportunidade

de as dar para apreciação;

e como ela faz de mim

um elevado conceito,

quer saber que opinião

formarei a tal respeito.

 

Pede-me, pois, que lhe diga,

sim ou não e sem favor,

se o seu mano é escritor,

colocando-me na mão

umas folhas do jornal

com os textos do irmão:

ora veja, faz favor.

 

Lidas as primeiras linhas,

fiquei logo esclarecido:

o motejo do farsola

fazia todo o sentido.

 

E eis-me ali encalacrado

entre dizer a verdade

com risco de provocar

à tia Rita um chilique

que a tombasse para o lado,

ou ceder à conveniência

e violentar a consciência

pra responder com agrado.

Intimamente implorei

a Santo Judas Tadeu

que me ajudasse a sair

duma tal entalação

em que a Rita me meteu.

 

O santo compadeceu-se,

atendeu ao que pedi,

e com sua inspiração

foi assim que respondi:

 

- diga-me cá, tia Rita,

como chama ao operário

que lhe vem pintar a casa

sempre que acha necessário?

 

- É pintor, está de ver.

 

- Pois se quem paredes pinta

se denomina pintor,

quem escreve e lança tinta

no papel é escritor.

 

Com esta minha resposta

e este meu argumentário,

a minha vizinha Rita

ficou muito bem disposta

e o seu mano continua

a orn(e)ar (n)o semanário.

 

* In: Flávio Vara, SERRAR DA VELHA - Por Detrás dos Montes . Para publicação

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