Os trasmontanos que são
a desonra do convento
estão, como tudo indica,
em rápido crescimento.
E serrá-los um a um
é impossível, são de mais;
vou conceder essa honra
apenas aos maiorais.
CONSELHOS PRÉVIOS
O viver é uma arte
que deve ser aprendida;
vou, por isso, apresentar-te
quatro mestres consumados
para venceres na vida.
Quer’s saber como as pessoas
de pobres se tornam ricas?
Pergunta ao Duarte Lima
que pode dar-te umas dicas.
Ambicionas ser atleta,
praticar o salto à vara
e saltar cada vez mais?
chama para treinador
o Armando de Vinhais.
Caso se faça rogado,
não tens de ficar aflito,
amostra-lhe um robalito
e está o assunto encerrado.
Desejas vender cabritos
sem ter cabras pròs parir?
Sócrates tem o segredo,
ajuda-te a descobrir.
Gostas de um modus vivendi
do tipo “rouba mas faz”?
Inspira-te em Isaltino
que nesse campo é um ás.
JOSÉ SÓCRATES
Dos quatro membros do bando
que vieram do Nordeste
amesendar-se em Lisboa,
Sócrates vai ao comando,
é a figura de proa.
Por ter vivido na Beira,
em terras da Covilhã,
muitos pensam que é beirão,
mas de lá só tem a lã,
os seus genes e a carcaça
são de trasmontana raça,
pois que Vilar de Maçada,
a sua
terra natal,
é concelho de Alijó,
distrito de Vila Real,
um longo memorial
de nomes de alto fulgor,
desde o rei seu fundador,
D. Dinis, o Trovador,
ao nauta Diogo Cão,
ao de escritores cimeiros,
de Camilo a Miguel Torga,
e de heróicos marinheiros
como Carvalho Araújo.
Que funesta maldição
traz agora um nome sujo
a conspurcar-lhe o brasão?
Nos tempos que atravessamos,
de tanta abominação
e de tanta falsidade,
grande falta nos fazia
um Sócrates como aquele
que foi mártir da verdade,
que travou contra os sofistas
uma impertérrita luta
e que,
por não se render,
foi condenado a beber
o veneno da cicuta.
Mas este que nos calhou
é o de Atenas ao avesso,
vive apenas da mentira,
é um réprobo, um possesso.
Eu até estou em crer
que não é de Trás-os-Montes,
mas do inferno oriundo,
um agente do Maligno
e por ele encarregado
de corromper este mundo.
Pelo sim ou pelo não,
tenho uma jaculatória
que rezo com muita fé:
a maleficiis socratibus
libera nos Domine.
ARMANDO VARA
I
Na cabeça do país
Vinhais é o seu cocuruto;
famosa pelo fumeiro,
pela excelente castanha
e outras árvores de fruto.
Mas o que mais contribui
pra elevar o seu estatuto
não é o que ela acrescenta
ao produto interno bruto.
Vinhais é vila ancestral
e pletórica de história;
bastar-lhe-ia ter sido
terra natal do Buíça,
o tal que matou o rei,
para ficar para sempre
nos fastos da nossa grei.
Mas desde agora em diante
brilhará no seu brasão
uma outra insígnia rara:
que é a de ter sido berço
do banqueiro Armando Vara,
desse grande campeão
dos sem vergonha na cara.
II
Nas aldeias transmontanas
há uma velha tradição
na festa do padroeiro,
em que se ergue no terreiro
o tronco de um amieiro,
muito liso e ensebado,
ao qual se prende no cimo
um presunto ou outro mimo
para ver quem é capaz
de, ao passar a procissão,
marinhar plo tronco acima
e de lhe lançar a mão.
Trepar ao topo do fuste
muito Armando desejava;
só que esse caso exigia
capacidades diferentes
daquelas do salto à vara
em que ele se distinguia.
Armando andava frustrado,
e como não era tolo,
dava voltas ao miolo:
não haverá outra maneira
de subir sem ser a pulso?
Uma forma virtual
de escalar o mastaréu
com novas tecnologias
e abarbatar o troféu?
Chegou mesmo a ponderar
uma forma de o fazer
que devia resultar:
a utilização de luvas
com aderência à madeira;
só que praticar batota,
de forma tão impudente,
expô-lo-ia à chacota
no meio de toda a gente.
Perante a impossibilidade
de subir sem ser à unha,
desistiu e foi à vida,
com uma grande caramunha.
III
A vida, de certo modo,
também é um tronco ensebado,
só que não é escalado,
à vista de todo o povo;
aí pode-se aldrabar
falsear as regras do jogo;
e mesmo sem grande garra
pode-se tocar guitarra,
e mesmo não tendo perna
pode saltar-se mui alto
recorrendo a força oculta,
por exemplo a catapulta
de um partido apropriado;
se não há unhas há cunhas,
há betinhos com padrinhos,
há tráfico de influências,
há as “boas” referências,
abusos, venalidades;
pululam os trapaceiros,
os últimos são primeiros.
Foi nessa grande desbunda
que o Armando mergulhou,
como peixe em água funda.
Mas apesar disso tudo,
por vezes até sucede
que mesmo o peixe graúdo
é apanhado na rede.
DUARTE LIMA
Postada sobre altas penhas
como uma águia real,
ou cidade maneirinha
como um ninho de andorinha
no sobranceiro beiral,
ó Miranda veneranda,
ó janela e sentinela
do reino de Portugal.
Não merecias que um filho
que alimentaste aos teus seios,
só por auri sacra fames
se envolvesse tão infames
tão criminosos enleios;
que um teu menino de coro,
que cantava como um anjo
nos claustros da tua Sé,
perdesse todo o decoro,
se tornasse um tal marmanjo,
renegasse a tua fé.
Mirandês desnaturado,
metido por maus caminhos,
ele é a tua vergonha,
desonrou-te a capa de honras,
manchou os teus pergaminhos.
Ó tredo Duarte Lima,
como te deste ao relaxo!
Ascendeste tanto acima
e desceste tanto abaixo!
Duarte Lima precito,
do clube dos embusteiros,
não mais virás a Miranda
para ver os pauliteiros.
Apostilha
No romance de Camilo
chamado “A Queda De Um
Anjo”,
o principal personagem
é um bisonho
trasmontano,
deputado por Miranda,
que, arribado à
capital,
fica logo encandeado
pela vida mundanal,
perde a simpleza
serrana,
perde até a tramontana,
para acabar muito mal.
A figura camiliana
e a de Duarte Lima
estão uma com a outra
em perfeitíssima rima.
E daqui a conclusão:
ou Camilo era vidente
de grande premonição,
ou Duarte Lima quis
conferir realidade
a uma obra de ficção.
ISALTINO MORAIS
Natural de Mirandela
e até gostava de alheiras,
mas começava a achar chato
ver as mesmas iguarias
todos os dias no prato.
Mirandela tem um rio
onde aprendeu a nadar,
mas isso não lhe bastava,
ele queria ser surfista,
águas que tivessem ondas
pra surfar na sua crista.
O rio Tua a correr
e Isaltino sem poder
realizar os seus sonhos,
os dias em Mirandela
eram frustes e tristonhos.
E eis que na festividade
da Senhora do Amparo,
padroeira da cidade,
aconteceu que Isaltino
se cruzou com uma cigana
que lá andava a ler o sino.
A cigana era vidente
e de horóscopo seguro;
pediu-lhe a palma da mão,
fez-lhe
logo a predição
do seu próximo futuro:
pelas conjunções astrais,
o Isaltino Morais
em breve iria mudar
da cidade à beira rio
para outra à beira mar,
para a cidade de Oeiras,
sua terra prometida
como assim estava prescrito;
lá esqueceria as alheiras
como Israel esqueceu
as cebolas do Egipto.
Lá havia muitas maneiras
para encher as algibeiras,
seus cabedais engrossar,
que um mirandelense guitcho
não ia desperdiçar.
E foi assim que este narro,
este trasmontano astuto,
elevou o seu estatuto,
mudou de marca de carro,
deixou de fumar cigarro,
passou a fumar charuto.
Tal como a lendária Inês,
depois de morta rainha,
também depois da prisão
ele venceu a eleição,
continuando a ser sultão
da cidade ribeirinha.
v
Aqui fica uma aguarela
de Isaltino tal como é:
um narro de Mirandela,
um autarca sempre em pé.
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