Envio
de colaboração
(ao
Dr. Jorge Lage para a “Antologia da Maria Castanha”)
Venho satisfazer
o compromisso que assumi de lhe enviar um texto para a sua antologia de
homenagem ao castanheiro. Se não me apressasse a fazê-lo, além do risco que já
corro por pertencer ao grupo mais acossado pelo assassino coronavírus, ficaria
sujeito a outro ainda pior: ter de vaguear para sempre neste mundo, como alma
penada, que é, segundo voz corrente, o castigo a que são condenados os que morrem
com alguma promessa por cumprir.
O texto
que aqui vai é de urdidura poética, em versos decassílabos e em número de catorze,
como nos sonetos, e também, como eles, passível de emenda, até porque pode não
corresponder ao caderno de encargos da encomenda e à dignidade devida àquela árvore
tão nossa amiga. Por isso, o encomendador fica de mãos livres para, se o
entender, lhe barrar a entrada na antologia, sem qualquer melindre da minha
parte, até porque eventuais defeitos detectados no controlo de qualidade serão
da inteira responsabilidade do coronavírus, pelas perturbações que trouxa à
minha musa, e porque o que está em causa é, acima de tudo, a honorabilidade e a
veneração que os castanheiros nos merecem. A essas árvores, por muitas vidas
que vivêssemos, nunca pagaríamos o quanto lhes devemos, e se não formos condenados
a almas penadas é porque os castanheiros são tão nobres e magnânimos que dão
sem esperarem reciprocidade.
Procurei imprimir
aos meus despretensiosos versos uma leve tonalidade transmontana, com algumas pinceladas
regionalistas como “avessedo”, “sincelo”, “daimoso”, “bilhós”. Relativamente ao
termo ”avessedo”, muito vulgar nas minhas berças, prantadas em plena Terra Fria
e não por acaso chamadas Rio Frio, permita-me uma breve anotação. As gentes lá
do meu sítio vêem os cabeços e as encostas predominantemente numa óptica de duas
faces: uma voltada a Norte, mais frígida e sombria, onde dá pouco o sol e onde
as neves e as geadas levam mais tempo a derreter, a que chamam “avessedo”; outra
virada a Sul, mais abrigada e exposta aos raios solares, que denominam ”soalheiro”.
Antes de existirem
ciências agronómicas, já os camponeses sabiam, por experiência milenar, que
certas plantas, como por exemplo a videira, se dão melhor ao soalheiro e que
outras, como o castanheiro, preferem os avessedos. Na minha terra há vários
soutos e todos, sem excepção, implantados nas vertentes frias; as vinhas, pelo
contrário, estão geralmente no lado soalheiro.
Eu tenho
uma certa predilecção pela palavra avessedo, por me ser familiar desde a
infância e ser ao mesmo tempo popular e erudita. Até estranho quando encontro
um trasmontano que não a conhece, mas pelos vistos não é extensiva a toda a província
e há terras onde é alterada para avesseiro e abixeiro. As três
formas constam nos dicionários como regionalismos. O progenitor destes rebentos
é o latino adversus, um garanhão que, além destes, gerou uma catrefada
de outros filhos como adverso, avesso, adversário, adversativo,
(lado) avesso, (às) avessas, etc. Nem todos esses
filhos são legítimos, havendo alguns “zorros”, fruto de uniões “aputadas” (oh
que transmontanismo mais patusco!). Referi o pai desses irmãos; e a mãe?
Perguntar-me-ão. Não a têm, são como os filhos do Ronaldo.
Vou
terminar a minha parlenga, pedindo ao Dr. Jorge Lage que me desculpe tê-la
prolongado além do razoável e ter posto à prova a sua paciência. As palavras,
em particular as transmontanas, não são apenas como as cerejas, mas outrossim
comos as castanhas; e eu distraí-me, imaginando que estava à lareira a
conversar e a partilhar consigo umas castanhas mimosas e quentinhas. Castanhas
que deviam ser estudadas por virólogos e epidemiólogos, pois tenho cá uma
fezada que é delas que vai sair o almejado antídoto contra o demoníaco vírus. Entretanto,
à cautela e sem esperar por tais estudos, cá me vou prevenindo com uma dose
diárias de bilhós, que acompanho com um copito de jeropiga para lhes potenciar
a eficácia terapêutica. Recomendo-lhe vivamente esta receita, que deve de ser
tomada de manhã, como mata-bicho.
ABENÇOADOS CASTANHEIROS
Moram nos avessedos dos outeiros,
em nevões e sincelos temperados,
os valentes, daimosos castanheiros,
a nós inteiramente devotados.
Distinguem-se entre as árvores de fruto
por serem atinados, previdentes;
aforram as castanhas no Verão
e arrecadam-nas dentro dos ouriços
para serem o pão dos indigentes
nos exauridos meses outoniços,
e os bilhós que nas noites de invernia
degustamos ao lume da lareira,
em fraternal, amena companhia
e em descontraída cavaqueira.
In : Jorge Lage, QUEM DE DERA CÁ O TEMPO - Antologia da
Maria Castanha, Ed. Do Autor, 2020, pág. 129.
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