terça-feira, 30 de março de 2021

Colaboração in "QUEM ME DERA CÁ O TEMPO - Antologia da Maria Castanha"

 

Envio de colaboração

(ao Dr. Jorge Lage para a “Antologia da Maria Castanha”)

 

Venho satisfazer o compromisso que assumi de lhe enviar um texto para a sua antologia de homenagem ao castanheiro. Se não me apressasse a fazê-lo, além do risco que já corro por pertencer ao grupo mais acossado pelo assassino coronavírus, ficaria sujeito a outro ainda pior: ter de vaguear para sempre neste mundo, como alma penada, que é, segundo voz corrente, o castigo a que são condenados os que morrem com alguma promessa por cumprir.

O texto que aqui vai é de urdidura poética, em versos decassílabos e em número de catorze, como nos sonetos, e também, como eles, passível de emenda, até porque pode não corresponder ao caderno de encargos da encomenda e à dignidade devida àquela árvore tão nossa amiga. Por isso, o encomendador fica de mãos livres para, se o entender, lhe barrar a entrada na antologia, sem qualquer melindre da minha parte, até porque eventuais defeitos detectados no controlo de qualidade serão da inteira responsabilidade do coronavírus, pelas perturbações que trouxa à minha musa, e porque o que está em causa é, acima de tudo, a honorabilidade e a veneração que os castanheiros nos merecem. A essas árvores, por muitas vidas que vivêssemos, nunca pagaríamos o quanto lhes devemos, e se não formos condenados a almas penadas é porque os castanheiros são tão nobres e magnânimos que dão sem esperarem reciprocidade.

Procurei imprimir aos meus despretensiosos versos uma leve tonalidade transmontana, com algumas pinceladas regionalistas como “avessedo”, “sincelo”, “daimoso”, “bilhós”. Relativamente ao termo ”avessedo”, muito vulgar nas minhas berças, prantadas em plena Terra Fria e não por acaso chamadas Rio Frio, permita-me uma breve anotação. As gentes lá do meu sítio vêem os cabeços e as encostas predominantemente numa óptica de duas faces: uma voltada a Norte, mais frígida e sombria, onde dá pouco o sol e onde as neves e as geadas levam mais tempo a derreter, a que chamam “avessedo”; outra virada a Sul, mais abrigada e exposta aos raios solares, que denominam ”soalheiro”.

Antes de existirem ciências agronómicas, já os camponeses sabiam, por experiência milenar, que certas plantas, como por exemplo a videira, se dão melhor ao soalheiro e que outras, como o castanheiro, preferem os avessedos. Na minha terra há vários soutos e todos, sem excepção, implantados nas vertentes frias; as vinhas, pelo contrário, estão geralmente no lado soalheiro.

Eu tenho uma certa predilecção pela palavra avessedo, por me ser familiar desde a infância e ser ao mesmo tempo popular e erudita. Até estranho quando encontro um trasmontano que não a conhece, mas pelos vistos não é extensiva a toda a província e há terras onde é alterada para avesseiro e abixeiro. As três formas constam nos dicionários como regionalismos. O progenitor destes rebentos é o latino adversus, um garanhão que, além destes, gerou uma catrefada de outros filhos como adverso, avesso, adversário, adversativo, (lado) avesso, (às) avessas, etc. Nem todos esses filhos são legítimos, havendo alguns “zorros”, fruto de uniões “aputadas” (oh que transmontanismo mais patusco!). Referi o pai desses irmãos; e a mãe? Perguntar-me-ão. Não a têm, são como os filhos do Ronaldo.

Vou terminar a minha parlenga, pedindo ao Dr. Jorge Lage que me desculpe tê-la prolongado além do razoável e ter posto à prova a sua paciência. As palavras, em particular as transmontanas, não são apenas como as cerejas, mas outrossim comos as castanhas; e eu distraí-me, imaginando que estava à lareira a conversar e a partilhar consigo umas castanhas mimosas e quentinhas. Castanhas que deviam ser estudadas por virólogos e epidemiólogos, pois tenho cá uma fezada que é delas que vai sair o almejado antídoto contra o demoníaco vírus. Entretanto, à cautela e sem esperar por tais estudos, cá me vou prevenindo com uma dose diárias de bilhós, que acompanho com um copito de jeropiga para lhes potenciar a eficácia terapêutica. Recomendo-lhe vivamente esta receita, que deve de ser tomada de manhã, como mata-bicho.

           

ABENÇOADOS  CASTANHEIROS

 

Moram nos avessedos dos outeiros,

em nevões e sincelos temperados,

os valentes, daimosos castanheiros,

a nós inteiramente devotados.

 

Distinguem-se entre as árvores de fruto

por serem atinados, previdentes;

aforram as castanhas no Verão

e arrecadam-nas dentro dos ouriços

para serem o pão dos indigentes

nos exauridos meses outoniços,


e os bilhós que nas noites de invernia

degustamos ao lume da lareira,

em fraternal, amena companhia

e em descontraída cavaqueira.

 

     In : Jorge Lage, QUEM DE DERA CÁ O TEMPO - Antologia da Maria Castanha, Ed. Do Autor, 2020, pág. 129.

 

 


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